IMPOSTO DE RENDA: Como a Receita ‘sabe’ da sua renda antes da declaração?

“Entrei na declaração de Imposto de Renda e praticamente tudo preenchido. Se eles sabem quanto eu ganho e gasto, pra que perguntar?”, brincou um usuário do Twitter. Ele não foi o único. Na hora de acertar as contas com o leão, quase um a cada quatro contribuintes recorreram à habilidade de a Receita Federal antecipar informações que eles estavam prontos para informar.

Saldo em conta corrente, imóveis recém-adquiridos, participação em fundos de investimentos. Essas foram algumas das informações que apareciam. Mas como a Receita “sabia” de antemão a respeito da renda e do patrimônio antes de as pessoas fazerem a declaração?

Antes de tudo, é bom dizer que a Receita só antecipou informações para os contribuintes que optaram pelo modelo pré-preenchido da declaração do Imposto de Renda.

Começo restrito a poucos

A versão pré-preenchida foi lançada em 2014, mas seu acesso era restrito apenas a quem tinha serviço pago de certificado digital. Essa base de usuários representava apenas 1% do total de declarações recebidas pela Receita, conta José Carlos Fonseca, supervisor nacional do programa do IR.

A quantidade de informações exibida também era limitada porque puxava dados apenas dos bancos das declarações do imposto sobre a renda retido na fonte (Dirf) e dos serviços de saúde (Dmed). Como a tecnologia era restrita a uma base de contribuintes tão pequena, não havia justificativa para investir na integração de novas bases de dados.

O certificado é oneroso e pegou muito bem, por exemplo, para pessoa jurídica. Mas não valia a pena fazer esse investimento tecnológico tão grande para uma base de usuários tão pequena

José Carlos Fonseca, supervisor nacional do programa do IR

Níveis prata e ouro no Gov.br

Tudo mudou em 2020. No primeiro ano da gestão de Jair Bolsonaro, o governo federal promulgou a lei 14.063, que estabeleceu regras para o uso de assinaturas eletrônicas requeridas por pessoas física e jurídica junto a entes públicos para realizar processos, solicitar informações, requerer benefícios ou enviar documentos. Com isso, definiu qual o nível de autenticação era necessário para permitir que órgãos federais, estaduais e municipais tivessem acesso a dados dos cidadãos.

No ano seguinte, o Ministério da Economia editou a Portaria 2.154, que regulamentou um dos trechos da legislação ao discriminar que tipo de autenticação digital junto ao governo federal poderia servir como assinatura do usuário.

Na prática, a portaria criou níveis diferentes de assinatura e autenticação: bronze, prata e ouro da plataforma Gov.br. Dependendo da qualificação obtida, o cidadão pode realizar um certo tipo de serviço público, com maior ou menor grau de sigilo. Para subir de bronze para prata, é preciso submeter credenciais de bancos integrados. Atingir o nível ouro exige cadastrar o reconhecimento facial na plataforma.

Com isso, a portaria estabeleceu que cidadãos com níveis prata e ouro podiam ter interações com entes públicos que envolviam informações sigilosas, como as que permitem a declaração pré-preenchida do Imposto de Renda. Uma dessas bases com informações protegidas é, por exemplo, a das declarações lançadas por empregadores.

Este movimento contribuiu para ampliar de forma massiva a quantidade de pessoas que podia ter acesso à ferramenta, já que, naquele momento, 95 milhões de pessoas estavam cadastradas no Gov.br.

A coordenadora de pesquisa em privacidade e vigilância do InternetLab, Bárbara Simão, lembra que certas informações que alimentam a versão pré-preenchida são classificadas como sensíveis de acordo com a lei. Por isso, exigem maior nível de proteção, conforme a LGPD (Lei de proteção de dados), já que, caso sejam vazadas ou mesmo divulgadas, podem fazer o contribuinte ser alvo de discriminação.

São enviadas informações médicas. Doações a partidos políticos também são declaradas. Então a Receita tem informações que podem identificar a opinião política de uma pessoa, a condição de saúde de uma pessoa

Bárbara Simão, do InternetLab

Restava, porém, ainda um último obstáculo. Até 2022, o contribuinte podia logar com conta ouro e prata no Gov.br apenas pelo e-CAC (Centro Virtual de Atendimento da Receita). Essa possibilidade só foi estendida neste ano para o programa IRPF para computador e aplicativo Meu Imposto de Renda para tablets e celulares.

Diante da possibilidade de ampliar a base de usuários dessa versão com a diversificação dos requerimentos de autenticação, a Receita também passou a oferecer um incentivo para promover maior adesão ao modelo pré-preenchido. Em 2023, os declarantes que aderiram à função garantiram entrada na lista prioritária para receber a restituição.

Para que serve?

Fonseca conta que a expectativa da Receita era de que o modelo pré-preenchido fosse usado em 25% das declarações entregues nesse ano. A meta quase foi atingida. Chegou a 24%, um salto em relação ao índice de 7% dos envios à Receita feitos pelos contribuintes em 2022.

A declaração pré-preenchida reduz o número de erros de digitação e oferece facilidade para o contribuinte fazer a declaração. Por isso, a Receita espera diminuir o número de atendimentos demandados pelos contribuintes que inverteram, pularam ou erraram algum número na hora de declarar, por exemplo.

Em 2023, pelo menos, não foi isso que ocorreu. Fonseca conta que o modelo pré-preenchido gerou demandas específicas da equipe do atendimento, devido às dúvidas dos contribuintes sobre essa versão.

“As pessoas reclamam de ter conta Gov.br de nível bronze e não poder ter acesso ao modelo pré-preenchido”, conta o supervisor nacional do IR na Receita Federal. Ele afirma que, quanto a isso, não tem muito jeito, pois “é menos provável que mudem o arcabouço legal, e a tendência é a pessoa migrar de nível de autenticação.

A Receita tem planos para os próximos anos de integrar mais bases de dados ao modelo pré-preenchido.

Para Bárbara Simão, a centralização dos dados no Gov.br feita pelos órgãos federais tem que levar em consideração que nem todo mundo tem habilidade para lidar com uma plataforma tão complexa quanto essa.

Em termos de acesso é preciso levar em conta o quanto esses sistemas estão sendo ampliados para as pessoas que não têm letramento na dinâmica virtual ou do ponto de vista do acesso à internet.

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