Biden usa regra sanitária de Trump para deportar crianças brasileiras dos EUA

Uma regra sanitária que freia a entrada de imigrantes em situação irregular nos Estados Unidos passou a ser usada pelo governo americano também contra brasileiros. A medida agiliza o processo para mandar de volta, em voos de deportados, os que tentam cruzar a fronteira para viver no país ilegalmente.

Conhecida como “Título 42” e tratada como uma ordem de saúde pública, a determinação foi instaurada ainda durante o governo de Donald Trump, em março de 2020. Desde então, a regra citava uma “séria preocupação com a introdução da Covid-19 nos EUA” como justificativa para a expulsão imediata de pessoas que tentarem entrar no país violando as restrições de viagens ou de forma ilegal.

A mesma determinação começou a ser aplicada contra viajantes brasileiros em outubro de 2021 e tem feito com que famílias com crianças e adolescentes sejam devolvidas ao Brasil.

Quem acompanha o tema vê relação direta do Título 42 com o fenômeno do dia 26 de janeiro, quando o Brasil recebeu um voo com 211 brasileiros deportados. Do total, 90 eram menores de idade —incluindo crianças de até 10 anos. O número de crianças e adolescentes devolvidos ao país foi inédito.

Embora tenha assumido a Casa Branca com a promessa de implementar uma abordagem mais humana em relação à imigração, o presidente Joe Biden continuou a adotar a mesma regra sanitária de seu antecessor e viveu meses de uma crise inédita nas fronteiras americanas.

Para especialistas, porém, não está claro o motivo para que o Título 42 começasse a ser aplicado contra os brasileiros só depois de um ano e meio de vigência contra imigrantes de outras nacionalidades e origens.

Para Saulo Stefanone Alle, doutor em direito internacional pela USP, a pandemia da Covid de fato pode se enquadrar em uma situação de emergência em saúde pública, apesar de a regra sanitária não ter sido criada especificamente em referência ao coronavírus.

“Essa lei é parte do Código Sanitário americano e foi incluída supostamente por ocasião da própria Covid-19”, explica Alle. “É uma norma que permite ao governo americano impedir a entrada de um estrangeiro em função de uma proteção sanitária.”

Segundo ele, o regulamento sanitário internacional permite que países adotem determinadas medidas de proteção quando houver justificativas técnicas. “É preciso também ter cuidado para que não se cometa injustiça”, pondera.

Sem o Título 42, os brasileiros que tentavam entrar ilegalmente no país se beneficiavam de outra regra que proíbe a separação de famílias de migrantes.

Ao pisar em solo americano acompanhado de um parente de primeiro grau menor de idade e se entregar às autoridades americanas, um migrante pede asilo e responde ao processo em liberdade. Isso ocorre porque uma criança não pode permanecer sozinha durante procedimentos de repatriação ao Brasil ou de aceitação pelo governo americano.

Contrabandistas e coiotes viram oportunidade de negócio e passaram a migrar adultos acompanhados de um menor, no sistema informalmente conhecido chamado “cai cai”.

Guilherme Favetti, criminalista na Favetti Sociedade de Advogados, disse que a nova medida aplicada aos brasileiros abre brecha para que o migrante seja expulso caso ofereça algum tipo de risco ao país —cada país tem um entendimento sobre o que seria esse risco.

Com a expulsão, as famílias não têm nem a chance de responder a um processo de pedido de asilo. Com isso, não ficam muito tempo detidas e voltam rapidamente em voos de deportados para o Brasil.

Para Favetti, com a aplicação da lei, o trâmite é muito mais rápido porque são retirados do migrante dois mecanismos que seriam usados para quem pede asilo: a defesa e o recurso. Assim, o processo se difere da deportação, que é um ato de retirada de um estrangeiro do país que esteja em situação irregular após o encerramento do processo.

Por isso, o advogado critica a estratégia americana. “Eu a vejo com maus olhos porque a expulsão tem critérios muito subjetivos, não traz critérios específicos sobre quais países e quais doenças [podem levar à expulsão]. Isso em mãos erradas pode virar uma lei de autoritarismo.”

De acordo com depoimentos, homens e mulheres foram algemados na frente dos filhos no voo de deportados que chegou ao Brasil no dia 26 de janeiro. Passageiros afirmaram à reportagem ter sofrido maus-tratos, e autoridades envolvidas no trâmite confirmaram que receberam relatos semelhantes.

O uso de algemas em cidadãos brasileiros deportados dos Estados Unidos criou um impasse entre o governo de Jair Bolsonaro (PL) e o de Joe Biden.

O Itamaraty vem fazendo apelos, desde o final do ano passado, para interromper a prática e melhorar o tratamento dado a brasileiros deportados, mas tem sido ignorado. Apesar de o pedido para abolir o uso de algemas valer para todos os deportados, de acordo com pessoas envolvidas nessas operações, havia o entendimento de que pessoas viajando com suas famílias, em especial, não seriam submetidas a essa situação.

O Itamaraty chegou a dizer que a situação é vista com “grande preocupação”. Segundo a pasta, o ministro das Relações Exteriores, Carlos França, falou por telefone com o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, no dia 30 de janeiro para tratar do assunto. Até o momento, a resposta das autoridades americanas às brasileiras é de que novas medidas estão sendo estudadas.

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