Atriz paraibana protagonista de novela da Globo diz que foi estigmatizada por causa do sotaque

Natural de João Pessoa, Isadora Cruz dá vida a uma das personagens mais queridas da televisão brasileira atualmente: a professora Candoca de “Mar do Sertão”, novela das seis da TV Globo. Para a atriz de 26 anos, a importância da protagonista ultrapassa as fronteiras da trama —Candoca é feminista, luta por justiça, enfrenta assédio, corre atrás. Nordestina, como a atriz que a interpreta, a personagem também representa um avanço nas narrativas historicamente centradas em figuras sudestinas, com sotaque “neutro”, das grandes emissoras. “É uma mudança muito importante. Eu acreditava que ia demorar muito mais para vermos algo assim, uma protagonista paraibana na novela das seis”, diz Isadora.

A atriz, que desistiu da faculdade de administração, aos 17 anos, foi morar na França, onde fez curso na Universidade de Sorbonne e teatro na escola de formação de atores Cours Florent. Quando voltou ao Brasil, logo foi escalada para a novela global “Haja Coração”, na qual deu vida a Cris —seu primeiro papel profissional que, além de ser em uma novela de destaque, trouxe outro desafio: Isadora teria que neutralizar o sotaque paraibano. “Foi incrível fazer a novela, mas foi muito difícil trabalhar o sotaque paulista, me prendia muito, eu ficava focada no sotaque e não conseguia me soltar”, ela conta.

Daí até Candoca, Isadora fez de tudo: recusou outro papel importante porque novamente teria que neutralizar o sotaque, se dedicou aos estudos e foi morar nos Estados Unidos, onde começou a construir sua carreira internacional —entre seus projetos estão o longa holandês “Men at Work – Miami”, de Johan Nijenhuisque, e o thriller de terror “The Mad Hatter”, dirigido por Catherine Devaney e lançado no Amazon Prime em 2021.

Após fazer testes e entrevistas por videochamada, Isadora foi escalada para viver Candoca em “Mar do Sertão” e, mesmo com outras oportunidades surgindo em Los Angeles, onde morava, ela decidiu, como conta, seguir seu instinto e fazer a novela. “Foi uma mudança muito grande na minha vida, deixei tudo para trás e, de repente, vim para o Rio de Janeiro. Estava morrendo de medo de me sentir sozinha, desamparada. Mas quando começaram a chegar os atores nordestinos, nossa, foi acendendo um fogo no meu coração. Pensei: ‘Gente, esse é o projeto da minha vida.’ Essa novela estava escrita nas estrelas”, diz.

A seguir, Isadora fala mais sobre sua personagem, a novela e a importância da representatividade de uma protagonista nordestina e de uma trama que busca ultrapassar os estereótipos e retratar a realidade das vidas da região.

UNIVERSA – Como é poder viver uma personagem com tanto destaque, como a Candoca, sem precisar neutralizar seu sotaque?

Isadora Cruz – Está sendo uma loucura, nunca achei que poderia trabalhar com isso, estar fazendo um projeto desse, apresentando meu povo, a minha brasilidade, contando as nossas histórias.

E é a novela das seis com maior audiência desde 2017. Isso é muito louco para uma novela das seis, com a maioria do elenco desconhecido, são muitos artistas de teatro, de cinema. Isso é a prova de que o talento é o que chama público. As cenas são gostosas, a troca dos atores. Para nós, artistas, isso é muito importante porque sei agora que pessoas como eu, lá em João Pessoa, vão me assistir e vão dizer: ‘Eu também posso. Claro que posso, Isadora conseguiu.’

E, além de você, o elenco da novela tem mais atores e atrizes nordestinos, certo?
Sim, e eu não esperava tantas pessoas nordestinas no elenco. Quando começaram as preparações, me sentir em casa, porque foi uma mudança muito grande para mim minha vida, vim sozinha, deixei família, namorado, oportunidades de trabalho nos Estados Unidos. De repente, vim para o Rio morrendo de medo de me sentir sozinha, desamparada. Mas quando começaram a chegar os atores nordestinos, foi acendendo um fogo no meu coração. Pensei: ‘Esse é o projeto da minha vida.’ Essa novela estava escrita nas estrelas. Tudo foi se encaixando e comecei a sentir que era uma quebra de paradigmas.

Esse é um movimento de representatividade inédito que estamos fazendo na Globo. O Allan [Fiterman, diretor artístico da novela] e a Marcia Andrade, a produtora de elenco, brigaram muito para a novela ter artistas nordestinos autênticos. É muito lindo ver que os tempos estão mudando, que há espaço para artistas que não eram conhecidos antes, mas que têm talento e o talento vence.

Na sua opinião, qual é a importância dessa representatividade para fora das telas?
Acho que essas são mensagens muito importantes e que eu sempre quis passar: da igualdade social, da inclusão social e da força da mulher. Porque a mulher paraibana, a mulher nordestina cresce estigmatizada pelo seu sotaque, suas origens. Agora escuto que nosso sotaque é ‘fofo’, ‘engraçado’, mas já ouvi muita coisa negativa. Quando eu falava inglês, por exemplo, e de repente voltava a falar português, com o meu sotaque, já ouvi brasileiro dizendo: ‘Nossa, mas você é nordestina? E fala inglês?’ Como se o paraibano não pudesse aprender inglês, como se fôssemos burros, abestalhados. E muitas vezes quando eu conhecia pessoas nas redes ou que só me viam por foto, quando eu as encontrava pessoalmente e começava a falar, elas mudavam completamente, como se eu fosse uma matuta, ingênua, não soubesse de nada. Então, crescemos com isso e, para quem teve oportunidade de ir para lugares como Rio e São Paulo, por exemplo, era pior ainda.

Você acha que o sudestino, no geral, ainda tem essa ideia preconceituosa e estereotipada do nordestino?
Ah, sim, é só a gente abrir a boca para sofrer um preconceito muito grande. E é muito louco porque São Paulo foi construído por nordestinos. É uma hipocrisia, uma tristeza o brasileiro não abraçar essa pluralidade do nosso país. Acho que narrativas como a de “Mar do Sertão” estão vindo para que as pessoas valorizem essa diversidade, essa pluralidade. O sertão não é cinza, não é morto, não representa a fome, a ignorância, a falta de cultura. Pelo contrário: é um sertão pulsante, colorido, musical, cheio de vida e de amor. E traz essa energia única, de que somos um povo forte, não temos vergonha de ser quem somos, agregadores, felizes, conversadores, calorosos. Veja a Juliette [cantora e ex-Big Brother], por exemplo. Ela foi uma figura muito importante para quebrar essa imagem. Porque sempre fomos vistos como pessoas mal-educadas, que falam alto, que falam demais, que são impulsivas, sem noção. Acho que o paulista ainda tem muito essa ideia do nordestino. E Juliette soube quebrar isso, porque ela era autêntica. Acho que o Brasil se apaixonou por ela por isso, pela verdade dela.

No seu primeiro papel na TV, na novela “Haja Coração”, sua personagem tinha sotaque sudestino. Como foi essa experiência?
É uma história curiosa, porque, antes de ser chamada para “Haja Coração”, eu estava em um processo para a minissérie “Justiça”, só que, nesse meio tempo, fiz um teste para a novela e passei. Daí decidi aproveitar a oportunidade. Eu tinha acabado de fazer 18 anos, mudei de João Pessoa para o Rio e, logo em seguida, comecei a gravar e estudar na CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), porque eu ainda era muito verde. Então eu gravava todos os dias das nove da manhã às cinco da tarde, atravessava a cidade e fazia curso até onze da noite. Gravamos por oito meses e foi uma experiência incrível, mas foi muito difícil porque o sotaque paulista me prendia muito, eu ficava focada no sotaque e não conseguia me soltar. Mas foi um bom papel, que ganhou destaque na trama, foi um grande aprendizado, mas vi que não estava pronta e fui me dedicar aos estudos.

Você chegou a recusar um papel por causa da questão do sotaque. Como foi isso?
Passei no teste para ser a protagonista de “Malhação: Vidas Brasileiras”, só que, quando eu soube que seria outro sotaque paulista, não quis porque ia voltar para o mesmo lugar em que estava em “Haja Coração”. E realmente queria poder ser livre, solta, autêntica. Senti que não podia me colocar nessa posição de novo e, apesar de eu ser muito nova –estava com 18 anos–, não conhecia ninguém do meio para estar com essa banca toda de negar o trabalho. Mas tive essa coragem. Acho que é a prova de que a gente pode, sim, fazer escolhas como artista e não ter medo. Sempre que me ofereciam papel de paulista, eu pensava: ‘Estão me colocando como paulista porque eles querem me ver nesse lugar ou é porque não existem histórias que contam a vida de nordestinos?’ E era isso, não existia esse interesse em contar essas narrativas, que são tão ricas e tão representativas do Brasil.

Crescemos assistindo a novelas desse Brasil neutro, distante do Brasil real. Daí você fala do preconceito que os nordestinos sofrem, principalmente no Sudeste e no Sul do país –o quanto você acha que a TV contribuiu para disseminar esse preconceito ao, historicamente, trazer protagonistas sudestinos e sobretudo personagens nordestinos muito estereotipados?
Acho que o preconceito já existia, mas a TV reiterou isso, sim. A gente não conseguia se enxergar ali. E também contribuiu para os artistas acreditarem que não tinha espaço para eles. Eu mesma, quando fui estudar, achei que seria impossível atuar com meu sotaque, a não ser em projetos específicos, regionalizados. Esse era, inclusive, o grande medo da nossa novela, de o nordestino não se sentir verdadeiramente representado. Mas a gente encontrou um lugar maravilhoso em que me sinto super-representada. Vejo as cenas e fico: ‘Meu Deus do céu, aconteceu a mesma coisa comigo, parece minha vó falando, parece a fulana falando.’ E tenho certeza que muitos nordestinos estão se vendo ali porque é um retrato perfeito.

Você acha, então, que esse cenário vem mudando ou ainda são projetos pontuais?
Acho que está mudando, sim. E acreditava que ia demorar muito mais para vermos algo assim, uma protagonista paraibana na novela das seis. Acho que a Globo sempre passou essa impressão que preferia não arriscar. E por isso botaram sempre as mesmas protagonistas, mesmo com sotaques diferentes para aprender outros sotaques.

Como tem sido a repercussão da novela e, principalmente, da Candoca?
O retorno tem sido muito positivo. Muitas pessoas têm falado coisas lindas para mim. Um dia desses, uma moça disse que a filha dela de 11 anos fala direto que quer ser igual à Candoca, uma mulher independente, forte, livre, que começa como professora e depois vira médica. E que não vive ali em torno da narrativa dos homens, que geralmente é o comum para a mocinha. Recentemente, outra pessoa me contou que a mãe está com câncer e que ela só sai da cama para ver “Mar do Sertão”. Fiquei muito emocionada. Isso faz tudo valer a pena.

E para você, depois de tanto tempo no Rio e nos Estados Unidos, como tem sido essa imersão no Nordeste?
Tem sido uma experiência muito importante. E é muito louco: sou paraibana e nunca tinha ouvido falar do Vale do Catimbau, que é do lado, em Pernambuco. É a prova de que nós, brasileiros, temos que desvendar e valorizar as nossas riquezas. Uma curiosidade: “Mar do Sertão” era, originalmente, uma história urbana, não ia ser no sertão. E aí o Ricardo Waddington [diretor de entretenimento] disse que queria fazer um projeto de mostrar o Brasil profundo, e pediu para o Mário [Teixeira] reescrever a história, inserindo-a no contexto do sertão. E faz muito sentido, principalmente depois dos anos pandêmicos. Precisamos entender o quanto nosso país é rico, o quanto a gente tem a oferecer, o quanto a gente tem que se valorizar.

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