Crianças fumam cigarros por 48 horas em homenagem a ‘festa tradicional’ em Portugal

A imagem pode ser impactante, além de ser um péssimo hábito, perigoso para a saúde: crianças entre 5 e 12 anos de idade fumando cigarros incentivadas pelos pais, que acompanham tudo de perto, seguindo uma antiga tradição portuguesa.

Na Festa dos Reis (chamada também de Festa dos Rapazes) de Vale de Salgueiro, vilarejo com cerca de 344 habitantes, pertencente ao município de Mirandela, no distrito de Bragança, em Portugal, celebrada sempre nos dias 5 e 6 de janeiro, além das danças, músicas e fartura de comidas típicas, a garotada incorpora o nocivo hábito adulto, permitido livremente ao longo de dois dias.

Portugueses de outras localidades não veem com bons olhos esse detalhe da comemoração em um país que restringe o consumo de cigarro a menores de 18 anos. Mas, para os moradores do vilarejo, a prática é apenas um costume popular que atravessa gerações.

Pais e mães compram maços de cigarro e distribuem aos seus filhos para poderem fumar à vontade durante o período festivo.

O Dia de Reis envolve diferentes tradições que podem variar bastante em alguns países da Europa. Na Itália, por exemplo, a criançada coloca meias nas janelas e portas para que uma bruxa boa deixe um presente (geralmente um doce) para aqueles que se comportaram bem ao longo do ano. Algo bem mais pueril do que a prática de fumar tabaco.

100 litros de vinho e 300 kg tremoços

O evento no Vale de Salgueiro, que simboliza a viagem dos Reis Magos até o menino Jesus, exige uma organização prévia.

Um ano antes, um jovem nativo é escolhido para representar um rei. A cerimônia é realizada em uma igreja na presença de um padre do povoado. Durante a solenidade, o rei anterior passa a coroa revestida de veludo e com adornos em ouro, que indicam riqueza e poder, para o novo soberano, além de um bastão com uma laranja cravada.

O novo monarca ficará incumbido de organizar o evento do ano seguinte e arcar com as despesas, que envolvem a compra de cerca de 300 kg de tremoços, 100 litros de vinho, além da contratação de músicos, algo que pode ultrapassar facilmente os 2.500 euros.

No primeiro dia do festejo, o rei desfila com um grupo de gaiteiros pelo vilarejo em um fim de tarde gélido, ofertando aos habitantes e visitantes os tremoços e o vinho armazenado em cabaças tradicionais. Enquanto isso, no centro do povoado, prepara-se a festa com uma imensa fogueira, e após a chegada do rei, a população se reúne para dançar a Murinheira (dança de inspiração celta) ao som da gaita de foles e outros instrumentos.

É quando se avistam as crianças locais fumando animadamente seus cigarrinhos em pequenos grupos. No dia seguinte, logo pela manhã, o rei percorre novamente as casas para desejar um bom ano e receber os donativos dos moradores, como contribuição para as despesas da festa. Comida farta e música compõem a cerimônia que se encerra com a revelação do futuro sucessor da coroa para o próximo ano.

Herança histórica e bom senso

Para os visitantes que vão ao Vale de Salgueiro participar da festa, o figurino esplendoroso da realeza não chama mais atenção do que a cena das crianças fumantes, muitas vezes ao lado de seus pais partilhando o mesmo costume.

A origem do hábito peculiar é desconhecida, existem rumores locais de que esteja relacionado à emancipação dos jovens, mas ninguém sabe ao certo como e quando isso começou nem seu verdadeiro significado. Os residentes mais antigos do lugarejo costumam dizer que a tradição já existia quando eles eram jovens.

As opiniões são discordantes, de um lado, moradores defendendo perpetuar uma tradição centenária, afirmando que as crianças não aderem ao tabagismo após o evento; do outro, o argumento de que se trata de um ato inapropriado e prejudicial à saúde infantil.

Em 2018, o cirurgião pediátrico José Pavão declarou a um canal de televisão português ser favorável ao fim desse costume. “Não há nada de nobre ver as crianças fumando, as autoridades locais deveriam opinar sobre isso”.

Carlos Cadavez, 50 anos, morador do Vale de Salgueiro e ex-presidente da junta de freguesia (administração local), compreende as diferenças de opinião. “Não é fácil para quem é de fora, quem não cresceu aqui, ver essa tradição com bons olhos, muito menos entendê-la”, acredita ele, que fez o rito quando era garoto. “Sempre participei da festa, sempre fumei e não me tornei um fumante, e 90% da minha geração não fuma”, afirmou.

Indagado se permitiria que uma de suas três filhas fumassem, ele respondeu prontamente: “Se elas quiserem fumar (na festa) eu não as proibirei”.

Diferente de Cadavez, José Ramos, 55 anos, tem outra opinião. “Essa situação do tabaco no país, o governo está tentando minimizar os danos à saúde, eu sou contra que as crianças fumem na tradição; É claro que muitos não aderem ao vício por causa da tradição, mas de todo modo, sou contra”, diz o morador de Mirandela.

O tabagismo infantil ‘ocasional’ no povoado parece ser um tabu social no país, onde poucos aceitam comentar a respeito.

Uma provável explicação

A controversa cerimônia serviu de argumento para um livro do escritor e pesquisador português José Ribeirinha Lopes. Na obra chamada Terra de Reis, o autor aborda as supostas origens desconhecidas do evento, relatando uma possível ligação com a celebração do renascimento anual da natureza.

Ele também pontua que o vilarejo está localizado em uma região habituada a praticar algumas celebrações pagãs, e que, durante o período de solstício de inverno, os locais se libertam, tendo comportamentos sociais que dificilmente teriam em outro momento.

Para o escritor, a tradição se manteve ativa muito em função do isolamento do povoado, localizado a cerca de 450 km de Lisboa, capital do país, e visto por alguns como um local esquecido.

A festa acabou se difundindo mais nas últimas décadas por conta dos meios digitais de comunicação, gerando polêmicas e debates sobre o assunto. Isso explica a redução no número de fumantes infantis em relação ao passado.

Ainda assim, é possível ver crianças ostentando seus cigarros pelas ruas do pequeno povoado. Se depender de Cadavez, único residente que concordou em dar um depoimento, a tradição será mantida por muito tempo ainda.

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