Mulheres afegãs temem perder direitos em negociações de paz com o Taleban

Roya Rahmani não é nem da realeza nem de uma família poderosa, por isso ficou inicialmente surpresa quando foi nomeada como a primeira mulher a ser embaixadora do Afeganistão nos Estados Unidos. Agora ela entende o porquê: Cabul quer sinalizar seu compromisso com os direitos das mulheres, à medida que o governo Trump pressiona por um acordo de paz com o Taleban.

Rahmani, uma antiga ativista dos direitos das mulheres, lembra muito bem como era o Afeganistão nos anos 1990, sob o domínio do Taleban, quando as mulheres eram espancadas por sair de casa e proibidas de frequentar escolas ou ter empregos. “As pessoas estavam esgotadas de esperança” e eram “zumbis vivos”, disse ela nesta semana em uma entrevista. Hoje, observou, as mulheres representam 28% da Assembleia Nacional do Afeganistão –mais que no Congresso americano.

Mas enquanto o Taleban e os Estados Unidos avançam em direção a um acordo de paz preliminar —que poderá ser divulgado em poucos dias—  há temores crescentes de que as mulheres afegãs percam os ganhos obtidos em quase duas décadas.

Os direitos das mulheres devem ser abordados nas futuras conversas, o que poderia resultar em um acordo de compartilhamento de poder entre o governo afegão e o Taleban. Embora algumas autoridades americanas e afegãs digam que o Taleban parece estar mais receptivo aos direitos das mulheres do que no passado, outras se preocupam com a possibilidade de que as mulheres sejam obrigadas a aceitar o acordo final ou deixadas de fora por completo.

“As mulheres afegãs deixaram claro que querem paz sem opressão”, disse a senadora americana democrata Jeanne Shaheen, de New Hampshire, a única mulher na Comissão de Relações Exteriores do Senado.

O governo Trump, disse ela, “precisa reconhecer plenamente que as mulheres afegãs são nosso maior trunfo para promover a causa da liberdade nesse país devastado pela guerra”.

“Seus direitos e seu futuro não devem se perder nessas negociações”, acrescentou.

Depois que as tropas americanas forçaram o Taleban a deixar o poder após a invasão do Afeganistão em 2001, em busca da Al Qaeda e de Osama bin Laden, as mulheres afegãs literalmente saíram de casa. Hoje, mais de 3,5 milhões estão matriculadas em escolas primárias e secundárias, e 100 mil frequentam universidades, de acordo com o Departamento de Estado dos Estados Unidos.

Auditores americanos estimam que cerca de 85 mil mulheres afegãs trabalham como professoras, advogadas, autoridades policiais e na área de saúde. Mais de 400 concorreram a cargos políticos em eleições realizadas no outono passado.

Mas muitos dos ganhos estão entre as mulheres de Cabul, a capital, e de outras grandes cidades. Nos últimos anos, o domínio do Taleban se expandiu em todo o país, especialmente nas áreas rurais.

O grupo controla pelo menos 10% da população do Afeganistão, em 59 dos 407 distritos do país, segundo o Escritório do Inspetor Geral Especial para a Reconstrução do Afeganistão. Outros 119 distritos são considerados contestados.

Como parte da próxima fase das conversações de paz, autoridades americanas e afegãs estão insistindo em um cessar-fogo permanente. Mas nem mesmo isso garantirá a paz para as mulheres afegãs, disse Rahmani.

“Quando falamos de paz e de um ambiente pacífico para todos, não estamos falando apenas da ausência de armas, balas e bombas”, explicou ela. “Estamos falando de um ambiente em que a segurança humana está presente, onde as pessoas viverão livres de todas as formas de violência, não apenas físicas, mas também emocionais.”

“Deve ser livre de medo e abuso”, disse Rahmani.

Rahmani, 41, cresceu em Cabul, mas fugiu para Peshawar, no vizinho Paquistão, depois que a guerra civil irrompeu no Afeganistão em 1992 e acelerou a ascensão do Taleban. Em uma viagem a Cabul com sua família em 1998, ela ficou chocada com o que lhe pareceu uma cidade fantasma, sem energia, onde as pessoas colocam cobertores em todas as janelas para impedir que a polícia religiosa do Taleban veja qualquer coisa, não importa quão inócua, que possa merecer uma surra.

O debate sobre os direitos das mulheres em um acordo final deverá se dividir, como é amplamente previsto, segundo a interpretação de cada lado sobre o papel das mulheres no islã, a religião nacional do Afeganistão.

Sob a Constituição afegã, adotada em 2004, homens e mulheres têm direitos e deveres legais iguais. A Constituição proíbe especificamente a discriminação e exige uma “educação equilibrada para as mulheres”. Afirma que todas as suas disposições e leis aderem às regras e à fé islâmicas.

Em um comunicado divulgado em fevereiro, o Taleban disse reconhecer que as mulheres têm certos direitos sob o islã, incluindo o acesso a educação e empregos, herança de propriedades e a capacidade de escolher um marido.

A política do Taleban, de acordo com a declaração, que foi divulgada em um fórum em Moscou, “é proteger os direitos das mulheres de maneira que nem seus direitos legítimos sejam violados, nem sua dignidade humana e os valores afegãos sejam ameaçados”.

Mas a declaração também descreveu influências imorais e indecentes do Ocidente e de religiões que, segundo ela, encorajaram as mulheres a violar os costumes afegãos “sob o nome de direitos das mulheres”. Citou a “disseminação de seriados dramáticos ocidentais, não-afegãos e não-islâmicos” como evidência da corrupção das mulheres afegãs.

Autoridades afegãs e ativistas que participaram das negociações entre o Taleban e os Estados Unidos disseram que conversas informais com membros do grupo extremista revelaram que o Taleban mudou desde 2001 — e pode estar ainda mais aberto aos direitos das mulheres.

“Uma coisa que notamos é que os talibãs não eram como os de 20 ou 18 anos atrás”, disse Asila Wardak, ativista de direitos humanos que participou das negociações. Estas aconteceram em Doha, no Qatar, em um fórum em julho no Instituto Georgetown para Mulheres, Paz e Segurança. Ela disse que há “muitas chances” de que as mulheres afegãs conversem com negociadores do Taleban e compartilhem suas preocupações nas discussões em Doha.

“Eles mudaram profundamente porque desenvolveram interesse em governar e prestar serviços”, disse Rebecca Zimmerman, pesquisadora da Rand Corp., um centro de estudos.

Especialistas sobre questões afegãs continuam céticos em relação às alegações do Taleban de que apoiam os direitos das mulheres — uma declaração que, na melhor das hipóteses, não foi testada. Na pior das hipóteses, ela é desafiada por contínuos ataques, ameaças e opressão contra mulheres por talibãs em distritos locais em todo o Afeganistão, mesmo quando seus líderes dizem querer a paz.

Ataques neste ano contra escolas de meninas no território do Taleban, perto da cidade de Farah, no oeste do país, e o fechamento forçado pelos extremistas de uma estação de rádio que empregava mulheres na província de Ghazni, no leste do país, indicam o contrário. Autoridades do Taleban negaram a responsabilidade pelos ataques fora de Farah, embora pichações nas paredes das escolas tenham elogiado o grupo extremista.

“Você não precisa olhar para 2001 para ver o que o Taleban fez nas áreas que detinha — você pode olhar para 2017, 2018, 2019”, disse Gayle Tzemach Lemmon, membro sênior adjunto do programa de mulheres e política externa do Conselho de Relações Exteriores.

Com informações da  Folha de São Paulo

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