Padre terá que pagar R$398 mil por interromper aborto legal de feto que tinha órgãos para fora do corpo

No dia 18 de agosto de 2020 o Supremo Tribunal Federal (STF) tornou definitiva a decisão de que o padre Luiz Carlos Lodi deve pagar R$ 398 mil de indenização por danos morais ao casal Tatielle Gomes e José Ricardo Dias. Isso deu desfecho a uma história que começou 15 anos antes, quando o padre impediu que eles realizassem um aborto permitido pela lei brasileira.

Então com 19 anos e aos cinco meses de gestação, Tatielle foi fazer um ultrassom de rotina e descobriu que o feto tinha uma anomalia. Moradora de Morrinhos, no interior de Goiás, ela precisou se ausentar do trabalho em uma fábrica onde trabalhava como operária e viajar 130 km até Goiânia para fazer mais exames. Na capital, quatro ultrassons trouxeram o diagnóstico: síndrome de body stalk, doença rara que faz com que os órgãos do feto fiquem do lado de fora do corpo, tornando a vida fora do útero inviável.

A dor da notícia já foi enorme, mas Tatielle mal imaginava a saga de violências que ainda enfrentaria.

Tatielle e o marido, José Ricardo Dias, voltaram para casa e esperaram um mês para repetir o exame. Então, com a confirmação do diagnóstico, foram orientados a buscar a Justiça e pedir autorização para a interrupção da gestação. “Eu tinha que fazer isso o mais rápido possível, porque era perigoso eu ir junto [morrer] também”, contou Tatielle em entrevista concedida em 2016.

Orientada por uma advogada, ela passou por sete médicos diferentes, que repetiram o exame e emitiram laudos confirmando que o feto não teria mesmo como sobreviver e que a orientação médica era a interrupção da gestação.

“Essa é uma síndrome muito grave e simples de identificar por ultrassonografia. É letal, porque as vísceras do feto ficam todas do lado de fora do corpo”, explica a médica obstetra Melania Amorim, que já atendeu casos como o de Tatielle. Ela explica que quando a síndrome é identificada, a orientação padrão é a interrupção da gestação. “Seguir com uma gravidez que tem um feto inviável é expor a mulher a uma situação de risco”, diz.

Tatielle lembra que esse processo de conseguir os laudos e pedir a autorização judicial foi um sofrimento. Lidando com a perda da filha (que já tinha nome: Giovana), ela teve que ficar na capital por 17 dias, sem recursos, indo e vindo do hospital. “Eu estava numa forma que custava até andar. Mas andava de ônibus, duas vezes por semana indo ao hospital, para conseguir ao menos tentar salvar a minha vida, já que a do feto não tinha condição”. Tudo isso também fez a família gastar mais recursos do que tinha.

Quase um mês depois, porém, a autorização chegou e tudo indicava que seu périplo chegaria ao fim. Tatielle voltou sozinha para Goiânia, porque o marido precisava trabalhar, e foi internada. Os médicos deram a ela os medicamentos para a indução do parto e ela começou a ter dilatação.

De repente, os médicos informam a ela que teriam de parar o procedimento. É que havia chegado um habeas corpus – uma ordem judicial preventiva – ordenando que o procedimento fosse interrompido. O autor do habeas corpus era o padre Luiz Carlos Lodi da Cruz. “Eu já estava passando mal, com três ou seis centímetros de dilatação”, lembra ela.

Nessa altura, a pesquisadora Débora Diniz foi acionada para acompanhar o caso e foi até a casa de Tatielle. Débora registrou a semana que se seguiu no documentário Habeas Corpus. “Ele era um filme testemunho, eu queria gravar a tortura a que ela estava sendo submetida pela abstração de um padre que nunca a havia visto”, conta a pesquisadora e cofundadora da Anis – Instituto de Bioetica, Direitos Humanos e Gênero. De fato, a produção traz 20 minutos de dor e sofrimento.

Isso foi num sábado e Tatielle ficou no hospital até a segunda-feira, quando foi enviada de volta para Morrinhos. Passou uma semana ali com dores, até que no fim de semana seguinte começou a sangrar. “Você podia pegar um balde, que era um sangue vivinho, vivinho assim. Passando mal mesmo. E eu ia ao hospital, mas o médico não podia pôr a mão, porque estava em ordem de Justiça”, conta ela.

Ela foi mandada de volta para casa, onde ficou com dor e sangramento até que não aguentou mais. José Ricardo conta que não havia ambulância disponível no dia e teve que acionar a polícia para levar Tatielle ao hospital. “‘Não fala que foi a gente que pegou, porque com esse negócio de Justiça vai sobrar ainda para a gente’ – foi o que o policial falou”, conta José Ricardo.

O médico ainda queria mandar Tatielle para Goiânia, no entanto, viu que o feto estava encaixado e que não daria tempo dela chegar na capital. Então fez o parto em Morrinhos mesmo e, como o previsto, o bebê sobreviveu por por pouco mais de uma hora. “Eu acho que nasceu foi por Deus, porque por eles [os médicos], eu tinha morrido”.

“O ato de obrigar a mulher a manter a gestação, colocando-a em uma espécie de cárcere privado em seu próprio corpo, desprovida do mínimo essencial de autodeterminação e liberdade, assemelha-se à tortura ou a um sacrifício que não pode ser pedido a qualquer pessoa ou dela exigido”, escreveu o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal (STF), em seu voto na ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental), que passou a permitir a interrupção da gestação legalmente no Brasil em casos de anencefalia do feto – sete anos depois do caso de Tatielle.

O aborto no Brasil é permitido por lei em três casos: em situações de gravidez resultante de violência sexual, anencefalia do feto e quando a gestação oferece risco à vida da mulher.

Justiça: a saga de Tatielle continua

A violência sofrida marcou a vida de Tatielle de várias formas. Além dos gastos que a família teve com todo o processo, as marcas psicológicas fizeram Tatielle enfrentar uma depressão. Até hoje, ela ainda tem dificuldade de falar sobre o que viveu. “Mexeu totalmente com a gente.”

Por causa de tudo isso, o casal decidiu entrar com uma ação contra o padre, em 2008, por danos morais. Mas o processo não foi simples.

Quatro anos mais tarde, os pedidos do casal foram julgados improcedentes pelo juiz da 13ª Vara Cível e Ambiental da Comarca de Goiânia, Otacílio de Mesquita Zago. Ele entendeu que não houve abuso por parte do padre ao recorrer à Justiça para interromper o procedimento, que também tinha sido autorizado pela Justiça.

Na época, o casal ainda foi condenado a pagar a custas processuais e honorários advocatícios do padre, no valor de R$ 1.200. Ao recorrerem da decisão, mais uma derrota. O relator do caso, Kisleu Dias Maciel Filho, chegou a citar em sua decisão que Tatielle e o marido “sofreram durante dias as dores e angústias ao terem que aguardar o parto natural do feto que esperavam” e que “não há dúvidas de que a ciência não poderia salvar a vida do bebê dos autores, em razão da letalidade da Síndrome de Body Stalk”. No entanto, optou por negar o pedido em favor do padre que, “como cidadão”, poderia “utilizar-se dos meios legais ao seu alcance para ver tutelado o direito à vida”.

Como não havia mais possibilidade de recurso em primeira e segunda instâncias, a defesa do casal levou o caso, em 2013, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Só em 2016, a Justiça se posicionou a favor da família, após decisão da ministra do STJ Nancy Andrighi (única mulher a apreciar o caso em todo andamento do processo). A decisão reverteu todas as negativas anteriores e condenou o padre ao pagamento de indenização de R$ 60 mil a Tatielle e José Ricardo – com correção esse valor hoje está em R$ 398 mil.

A decisão foi noticiada na época, e o padre Lodi chegou a afirmar que não tinha bens para pagar a indenização.
Com base nessa decisão, o ministro do STF Dias Toffoli manteve a condenação, em última instância, encerrando o processo em agosto de 2020.

“Por que essa medida judicial é importante? É a primeira que eu conheço na América Latina e no Caribe de tamanha sentença contra a Igreja Católica. Segundo, ela tem um papel inibidor da voz da igreja para causar danos morais às mulheres. Esse padre parou de fazer habeas corpus contra as mulheres, então essa ação tem um papel inibidor. E essa é uma história que pode ser inibidora sobre as ofensivas religiosas sobre o espaço público”, diz Débora Diniz.

Foram 12 anos de processo em andamento na Justiça até a sentença em trânsito e julgado (quando não há mais possibilidade de recurso por parte do réu), mas a saga de Tatielle está longe de acabar. Isso porque as advogadas do casal devem acompanhar agora o cumprimento da sentença, ou seja, o pagamento da indenização à família.

Esta fase inclui um prazo para o pagamento de forma voluntária e, se isso não acontecer, novos prazos para que a Justiça indique bens do patrimônio dele para que possam ser utilizados para sanar a dívida. “O Código Civil determina um prazo de 5 anos para que a ação de cobrança seja ajuizada. O processo, todavia, não tem prazo para terminar”, explica a advogada Vitória Buzzi, da Anis.

Procurado, o padre não quis comentar o caso.

Nesse meio tempo, Tatielle teve dois outros filhos, de 10 e 4 anos. “Essa mulher não pode esperar mais anos por essa indenização. Ela tem um quadro depressivo importante, ela trabalha e oscila em tempos de licença por saúde mental, que resultou dessa experiência traumática que ela viveu”, conta Débora Diniz.

Um Brasil de padres Lodi

Por mais dolorosa e sofrida que seja a história de Tatielle, ela não é única. O próprio padre Lodi moveu outras ações judiciais parecidas contra outras mulheres. Uma delas foi em 2002, contra Gabriela de Oliveira Cordeiro, que estava grávida de um feto anencéfalo e já internada quando recebeu a notificação.

O caso de Gabriela foi levado ao STF, mas antes que fosse julgado ela deu à luz Maria Vida, que morreu em sete minutos. O caso foi arquivado, mas motivou Débora Diniz e Anis a entrar com a ADPF pedindo a descriminalização do aborto em casos como o dela. Em 2012, a sentença mudaria os rumos da tomada de decisão para mulheres como ela.
E como Tatielle.

“A decisão que condenou o padre foi proferida pela ministra Nancy Andrighi, no STJ. Ela entendeu que a ADPF 54 afastou a possibilidade de criminalização da interrupção da gestação de fetos anencefálicos, e, por extensão de interpretação, também de portadores da síndrome de body stalk.

Dessa forma, a interrupção da gravidez, nas circunstâncias que experimentou Tatielle, era um direito seu, do qual ela poderia fazer uso, sem risco de persecução penal posterior e, principalmente, sem possibilidade de interferências de terceiros. Seria, pois, opção do casal – notadamente da gestante – assumir ou descontinuar a gestação de feto sem viabilidade de vida extrauterina”, explica a advogada Luciana Rosário, da Anis, que acompanha a execução do caso.

Mas apesar do que está na lei, meninas e mulheres que teriam direito ao aborto legal no Brasil ainda sofrem para ter acesso ao seu direito, como mostra o caso recente que ocorreu no Espírito Santo. Uma menina de 10 anos, vítima de estupros por anos de um tio, engravidou e sofreu inumeráveis violências para conseguir acesso à interrupção da gestação – que no seu caso, se enquadrava em dois critérios da lei: risco de vida à mulher e gravidez decorrente de violência sexual.

A menina foi assediada por funcionários do governo, enviados pela ministra Damares Alves, por extremistas que divulgaram seus dados pessoais e por fundamentalistas religiosos que a perseguiram no hospital. Foi necessária uma operação de guerra para garantir que ela tivesse acesso ao seu direito e sua infância.

Essa não foi a primeira vez que a ministra Damares tentou interromper um aborto permitido por lei. Em 2013, Jéssica da Mata Silva estava grávida de seis meses quando foi diagnosticada com um câncer raro de pulmão. Ela precisava interromper a gestação para fazer o tratamento e entrou na Justiça para conseguir a autorização. Damares tentou anular a decisão da Justiça, mas não conseguiu.

 

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